Terça-Feira, 17h34, dia 14 de setembro de 2004, a minha banda autoral de rock psicodélico Tatubala é a primeira de três grupos à tocarem na tarde do evento CEP 20.000, do Espaço Cultural Sérgio Porto, no Humaitá no Rio de Janeiro. A apresentação é animada, com os clássicos conhecidos, de quem nos acompanhava, como"Chá das 5", "Cana Brava" e "Cabeça de Rabo de Camarão", etc. E num teatro, tipo de local no qual eu adoro em atuar. Talvez seja pelo fato do público ficar mais focado no show.
A música seguinte seria "O Dia Vai Chegar", um instrumental fusion em 5/7, feita em minha parceria com o baixista Bruno Lima, o famoso Bigode pros dias atuais, na qual neste groove cabe muito improviso. Foi quando meu pai, trompetista, vestido socialmente de calça creme e camisa de botão azul clara é convidado ao palco para uma participação especial. Seria a primeira vez, nos meus então 25 anos que nós tocaríamos juntos ao vivo.
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| Tatubala e Boanerges no Espaço Cultural Sérgio Porto em 2004 |
Sem modéstia à parte, quando entramos com o tema, juntando guitarra e trompete, e seu improviso em seguida em seu solo, todos da banda e o público entraram em transe. Meio que me sentia na apresentação de Miles Davis, em Iha de Wight, de 1970. Um clima muito louco, no bom sentido. E após aquela viagem toda, e de apresentar os músicos da banda (Eu, Bruno, Vitinho na bateria e Dani Hani na percussão), a platéia de pé, aplaudiu euforicamente, ao gritos de "-Valeu corooooa!!". Foi algo de lavar à alma!! Lembro bem ele acenando agradecendo à galera com seu sorriso estampado no rosto.
Meu pai passou a semana toda no telefone, elogiando orgulhosamente a banda e a apresentação para amigos e familiares. Dali ainda teríamos outros encontros casuais. Mas, antes vamos conhecer como tudo começou.
Boanerjão, nasceu em 1942, ano icônico em relação à nascimento de grandes músicos. A lista é interminável, que vai de Jimi Hendrix à Tim Maia, Paul McCartney, Milton Nascimento, Caetano & Gil, Paulinho da Viola, Aretha Franklin, Jerry Garcia, Nara Leão, Clara Nunes, Andy Summers, Ronnie James Dio e até Brian Jones, fundador dos Rolling Stones...
Começou tocando trompa, aos 9 anos, com seu pai, Manoel Conceição de Castro, o "Seu Né", nas bandas de sua cidade natal, Livramento de Nossa Senhora, na Bahia. Passou para o trompete por volta de seus 15 anos, e anos depois se graduou na Escola de Múscia UFBA em 1970 em Salvador. A história mais completa pode ser vista no encarte abaixo do seu disco "Lugares" de 2009. Então foi neste período entre final dos anos 60 e início dos 70, que conheceu uma das suas grandes inspirações, o trompetista: Miles Davis.
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| Biografia de Boanerges de Castro |
Eu como, todos sabem, sou do rock n´roll, por influência dos meus irmãos. Porém sempre ouvi por tabela muito jazz, mpb e música clássica com meu pai. O que me ajudou, anos depois à apreciar estes generos músicais. Mais exatamente por volta de 2000, quando meu tio Davi trouxe de fora de presente pra seu irmão, os cds "Coltrane", de John Coltrane (1962) e The Dark Keys, de Branford Marsalis (1996), ambos saxofonistas. Na curiosidade apertei play e minha percepção mudou. A partir dali me encatei pelo jazz.
Nessa pude aproveitar algumas coisas da coleção do meu pai, como uma fita cassette de Milestones (Miles Davis) e um cd de Giant Steps (John Coltrane) então virei fã destes dois ícones e me aprofundei. Nesta, embalado pelo filme do festival da Ilha de Wight, entrei na onda fusion e elétrica do Miles. Foi aí que meu pai me fez duas observações.
I - "Miles Davis em meados do meio dos anos 70 em diante, e principalmente nos anos 80 perdeu muito da qualidade de sua embocadura. Talvez por causa de muitos excessos. Fui ao show dele uma vez também, e o som do seu trompete não é o mesmo dos anos 50 e 60." Apesar do Miles já curtir suas droguinhas desde os anos 40.
Isto me fez ter uma percepção dos tipos de sons dos álbuns dele, como inclusive de comparar a sonoridade de meu pai tocando, com demais músicos que eu via por aí. Ah... ele dizia que seu álbum preferido era o "Miles Ahead" (de 1957).
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| Nossa coleção de Miles. Eu dava de presente CD pra ele, mas no fundo era pra eu escutar também. |
Outra coisa, foi uma vez que estava treinando guitarra em casa, querendo dar uma de virtuoso. Ele chegou até mim e disse:
II - "Pra quê muitas notas? Miles Davis já dizia que muitas notas é como chover no molhado. Não tem o meio efeito da nota certa ou melodia bem feita". Mais um aprendizado!
Esse meu gosto pelo jazz, nos fez curtir momentos juntos. Fomos à shows de nada menos que Wayne Shorter, Chick Corea e Roy Hardgrove. Foi inclusive, num desses, do baixista Dave Holland, no antigo Mistura Fina, na Lagoa, que conhecemos outro baixista, Jorge Oscar, que foi quem produziu seu álbum "Lugares".
Nesta mesma época, em 2008, eu também estava gravando meu disco "Vírus Radio Ativo" do Tatubala. Então fizemos uma troca. Ele fez participação em duas faixas, entre elas, a "O Dia Vai Chegar". Aquela mesma na qual nos apresentamos no Sérgio Porto e em outros palcos. E eu, em retribuição, participei da faixa "Aclimação" do seu novo disco "Lugares" (2009).
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| Boanerges e seu trompete em algum lugar do mundo nos anos 80 |
Mesmo tendo esse vínculo do rock-jazz, nós até então, nunca tivemos banda juntos. Havia aquela coisa de pai chamando atenção de filho. Então, sinceramente era preciso paciência. Porém, fiz algumas gravações com ele, e outras vezes, de forma amadora, filmar e ilustrar clipes de composições dele. Apresar dele já ter tocado, e ter tido oportunidade de tocar com famosos, sempre quis priorizar as suas músicas.
Inclusive, ele quase ficou famoso durante a pandemia, quando ele ia na varanda no Leblon no mesmo horário à noite tocar seu trompete, à fim de confortar aquele caos. Os aplausos das janelas dos prédios vizinhos começaram a aumentar a cada noite, à ponto da Globo, querer fazer uma matéria para o RJTV. Mas, por medo de se contaminar, minha mãe vetou (risos).
Mas voltando na realização de tocarmos juntos, esta se concretizou em anos recentes, quando resolvi expandir o meu tributo aos Rolling Stones, chamado A Boca, colocando naipe de metais com trompete, sax e backing vocal. Fizemos somente três shows, porém memoráveis, que carregarei para sempre na minha memória. Não fizemos mais, pois é mais complicado conseguir cachês para nove músicos, do que para seis. Ele mesmo questionava "-Como as pessoas desprezam uma banda dessa qualidade!?"
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| A Boca no Centro Cultural da Justiça Federal em 2023 |
Hoje, 22 de novembro de 2025 é Dia do Músico. Dia de comemorar a magia que torna livre nossas almas. E pra quem o conheceu, sabe que com certeza ele está muito feliz com a notícia de hoje. A sua luta não foi em vão.





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